Todos os males que afetam a sociedade portuguesa estão enumerados, repetidos, lamentados, e são suficientemente graves para que se lhes acrescente, e aprofunde, a divisão entre os que conjuntamente partilham o sofrimento da época que lhes aconteceu viver. A regra histórica é de que os governos se acusam reciprocamente do passado que herdam e nunca do que deixaram, salvo quando acode a lembrança de atribuir ao povo os defeitos que impediram a boa governança, o que levou um pessimista a sugerir a mudança de povo.
A situação atual não ameaça que tão radical proposta seja adotada como programa de governo, mas a emigração forçada pelas carências, e indesculpavelmente pelos conselhos de quem tem deveres diferentes, todos os dias diminui esse povo que é necessário governar, e que também recusa fazer crescer a natalidade porque não arrisca ser responsável pelo sombrio presente e futuro dos filhos.
Nesta circunstância, aprofundar o número de fraturas da comunidade, doutrinando no sentido de colocar os jovens contra os velhos, os empregados da iniciativa privada contra os funcionários, os poderes locais contra a governança central, é uma contribuição dispensável, porque a desordem mundial encarrega-se designadamente de promover os conflitos que agravam a capacidade de resposta local às exigências de ter um novo futuro com paz e esperança.
Isto significa que sendo o núcleo do problema que angustia a comunidade, a qual não está isolada nesta condição, ter trabalho e pão na mesa, o estado das coisas torna evidente que as fraturas na estrutura e articulação dos órgãos de soberania são mais profundas e inquietantes do que as que o modelo europeu já conseguiu, por toda a Europa, causar na sua relação com as sociedades civis.
É por isso que a reforma do Estado cada vez menos se confronta com a simples gestão dos serviços do Estado, e que a busca de um remédio anda enredada na pergunta, sem resposta, de analistas, e que se traduz em averiguar se o Estado que conhecemos ainda é a invenção capaz de governar, quando lhe aconteceu o "cisne negro" do globalismo, sem experiência histórica anterior que ajude a formular uma solução. Razão suficiente para entender que a proposta governamental posta em exame seja suficientemente vaga para conseguir orientar a busca da nova governança, com a vigente irremediavelmente dividida em fações, cada uma enfrentando o problema de compreender o mesmo cisne negro, e reformular a estrutura e referências específicas de cada uma.
As manifestações populares não enquadradas são todavia um sinal dessa exigência, e o apelo, esquecido, do modesto cidadão que se dirigiu ao provedor de Justiça, pedindo o reconhecimento do seu direito de resistência porque não tem recursos para sustentar os filhos e portanto nenhuns para sustentar o Estado que temos, merecia uma resposta audível pela comunidade que começa a ter conhecimento, direto ou indireto, da opinião de Jefferson quando, já depois de Filadélfia, lhe foi comunicado para Paris, onde estava como embaixador, que essa resistência se manifestava na recente independente América: respondeu que ainda bem, a bem da defesa dos princípios.
Agora trata-se das lembradas necessidades vitais, do pão de cada dia, do trabalho honrado, da dignidade, tudo coisas que são do interesse público, não são do interesse dos poderes anónimos que governam as finanças mundiais, e fazem da especulação imaginativa a sua especialidade, e do interesse privado o seu credo.
A nossa casa europeia está dividida, a nossa casa portuguesa está dividida, a sociedade civil, que é antes de mais uma comunidade de afetos a preservar, espera que um dos centros de poder tome a responsabilidade de chamar à visão da realidade, antes que a governança se veja compelida a assumir a decisão de afastar responsabilidades no desastre, que vai envolvendo o Sul mediterrânico e ameaça o Ocidente.
Uma das vias mais evidentes da urgência de assumir uma atitude renovada está em que os caminhos que os povos do Norte desceram até ultrapassar o limes romano, são agora os que os do Sul sobem como emigrantes em busca de futuro.
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